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HÁ VIDAS QUE VALEM MAIS?

Autores: Alexandre Imbriani* e Lucie Antabi*
Ao final do mês de fevereiro de 2020 confirmou-se o primeiro caso do “Coronavírus” (COVID-19) no Brasil. Em 13.03.2020 já se contabilizavam 56 (cinquenta a seis) casos confirmados no Estado de São Paulo e 16 (dezesseis) no Rio de Janeiro, tendo o Ministério da Saúde reconhecido a “transmissão comunitária” do vírus - quando não é mais possível identificar a origem da contaminação - nas capitais de ambos Estados. A “transmissão comunitária” em todo território nacional foi declarada no dia 20.03.2020, tendo se somado até aquela data 904 casos confirmados do COVID-19 e 11 (onze) mortes decorrentes da doença.

A rapidez com a qual o vírus se prolifera é assustadora. Os números de contaminações confirmadas e mortes aumentam a cada dia de forma estrondosa. Para tanto basta olhar o balanço diário divulgado: em 25.03.2020, já se totaliza 2.297 (dois mil duzentos e noventa e sete) casos confirmados e 48 (quarente a oito) mortos, números estes que só tendem a aumentar em razão do acentuamento da curva epidêmica.

Diante deste cenário, surge o questionamento sobre a possível insuficiência dos leitos hospitalares, respiradores, e outros equipamentos para atendimento da população que necessite de cuidados médicos (infectados pelo vírus ou não) ao longo da alta demanda de internados pelo “Coronavírus”.

Antevendo eventual colapso, alguns Estados e Municípios estão adotando medidas para ampliação dos leitos. No município de São Paulo/SP, por exemplo, serão implementados 2.000 (dois mil) novos leitos: 1.800 (mil e oitocentos) serão alocados no sambódromo do Anhembi e 200 (duzentos) no estádio do Pacaembu, conforme anunciado pelo prefeito, Bruno Covas, no último dia 20.03.2020. O governador do Estado, João Dória, anunciou em 23.03.2020 que o Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP terá uma área exclusiva para tratar de pessoas infectadas, sendo que no próximo dia 27.03 mais 200 (duzentos) novos leitos já estarão em funcionamento e outros 700 (setecentos) serão entregues até o dia 10.04.2020.

O Ministério da Saúde, por sua vez, contará com R$1.600.000.000,00 (um bilhão e seiscentos milhões de reais) para combater a pandemia, valor este oriundo dos recursos recuperados pela “Operação Lava-Jato”. A medida foi determinada na data de 22.03.2020 pelo Alexandre de Moraes, Ministro do Supremo Tribunal Federal.

Feitos tais apontamentos e levando-se em consideração o avanço desenfreado da propagação do Covid-19, bem como imaginando-se remotamente que não seja possível disponibilizar leitos e equipamentos para toda a população que necessite, poderia o médico deixar de atender determinado paciente para salvar a vida de outro?

Explique-se.

Os profissionais da área de saúde informaram que determinadas pessoas integram o chamado “grupo de risco”, ou seja, os mais sensíveis ao vírus, sendo o grupo composto por indivíduos da terceira idade e os que possuem alguma doença crônica, como diabetes e hipertensão.

Neste contexto, poderão os médicos priorizar o atendimento daquele que possui maiores chances de sobreviver? Em outras palavras, os idosos com mais de 60 (sessenta) anos, ou aqueles que possuem doenças crônicas podem ser preteridos em detrimento de alguém que tenha maior chance de responder de forma eficaz ao tratamento? Caso assim o faça, o médico, responderia por algum crime?

A “vida”, enquanto direito fundamental, é garantida e protegida a todos pela Constituição Federal. O direito a saúde deve ser assegurado a toda população, por meio de políticas públicas e sociais, cuja finalidade é reduzir o risco de doenças e possibilitar o tratamento adequado a todos. Aliás, o direito à saúde também é considerado pela Constituição Federativa da República como um direito social, devendo ser prestado pelo Estado de forma adequada.

O médico, por sua vez, exerce uma função essencial de interesse social para garantir tais princípios fundamentais a todos. Diante da relevância da atividade por ele desenvolvida, cumpre ao profissional obedecer rigorosamente o Código de Ética Médica, regulamentado pelo Conselho Federal de Medicina, por meio da Resolução nº 1931/2009.

Referido Código estabelece, em seu capítulo III, a “Responsabilidade do Profissional”, sendo expressamente vedado ao médico, de acordo com o artigo 7º, “deixar de atender em setores de urgência e emergência, quando for de sua obrigação fazê-lo, expondo a risco a vida de pacientes, mesmo respaldado por decisão majoritária da categoria”.

Igualmente ao médico é vedado, nos termos do artigo 33 do referido diploma, “deixar de atender paciente que procure seus cuidados profissionais em casos de urgência ou emergência, quando não haja outro médico ou serviço médico em condições de fazê-lo”.

No âmbito criminal, em linhas gerais, a responsabilidade pela prática de algum delito decorre da demonstração de uma conduta comissiva (agir positivo, ação) ou omissiva (abstenção do que deveria ser feito), sem a qual o resultado, considerado pelo legislador como um determinado crime, não ocorreria.

Praticará uma conduta omissiva aquele que figurar na posição de “garante”, ou seja, que tenha o dever de agir para evitar o resultado. Essa posição pode decorrer de lei, quando esta estabelece a obrigação de cuidado, proteção ou vigilância, quando assumiu a responsabilidade de assumir o resultado e, ainda, quando um comportamento anterior tenha criado o risco da ocorrência do resultado.

Portanto, o médico assume uma posição de “garante”, estabelecida, inclusive, a partir das disposições elencadas no Código de Ética Médica. Assim, se um determinado médico não atende a determinado paciente que deveria atender e este venha a óbito em razão da ausência de atendimento, poderá ele incorrer na prática do delito de homicídio culposo ou omissão de socorro

Por outro lado, poderá o médico, a partir de uma conduta omissiva, praticar homicídio doloso. Imagine-se que o profissional soubesse da obrigação de atender um paciente do “grupo de risco” que se encontrasse em perigo de vida, tendo amplo conhecimento de que se não realizasse o atendimento, o enfermo faleceria e, mesmo assim, de forma consciente e voluntária, deixa de atendê-lo para atender outro com mais chances de sobrevivência. Se em razão da ausência de atendimento o paciente vem a óbito, a hipótese de homicídio doloso poderia ser aventada.

Diante da situação caótica posta, se o médico realizar a “escolha” para atender determinado paciente para salvaguardar outro poderá ter assim agido sob o manto da figura denominada no Direito Penal de “estado de necessidade”, conflito de interesses lícitos e legítimos, sendo considerada uma excludente de ilicitude.

O ,“estado de necessidade”, se configura quando a violação de um direito alheio de um inocente é a solução encontrada para se superar uma situação de perigo atual, oriunda de circunstâncias não ocasionadas pelo agente.

A legislação brasileira adota a teoria unitária sobre o estado de necessidade, uma vez que não existe comparação de valores entre bens jurídicos postos em perigo atual e concreto. No entanto, deverão ser observados alguns requisitos para analisar se determinada conduta estaria amparada sob o manto de tal excludente de ilicitude, quais sejam: (i) ameaça de direito próprio ou alheio; (ii) existência de perigo atual e inevitável; e (iii) impossibilidade de evitar o perigo de outro modo.

Diante do quadro exemplificativo, deve-se ter como premissa que a, ,“escolha”, teria se dado em razão da impossibilidade do Estado de cumprir o seu dever social de prestar de forma digna o acesso à saúde de todos, não dispondo de instrumentos necessários para atender a demanda de pacientes ocasionada pelo hipotético cenário decorrente da pandemia.

Neste sentido, visto que não há vidas que valem mais que outras, cabe aos profissionais da área de saúde adotar e delimitar critérios que devem ser observados em cada caso concreto.

Diante das peculiaridades inerentes ao imaginário colapso suscitado, poder-se-ia sustentar que a ,“escolha”, do médico poderia se pautar em garantir a vida e a saúde de um número maior de pessoas, evitando-se assim que o número de vítimas fatais aumentasse desenfreadamente.

No entanto, o simples fato de uma pessoa necessitar de atendimentos médicos exclusivamente por fazer parte do “grupo de risco” não garantiria ao médico a possibilidade de não atendê-la, para assim salvar outra pessoa que não integra tal grupo. Por outro lado, almejando exatamente salvar um número maior de vítimas, poderia se argumentar que o médico atuaria em “estado de necessidade” se deixasse de atender um paciente cuja morte seria inevitável, para assim possibilitar a realização do atendimento e a internação de outro paciente que poderia ter o seu quadro reversível apenas se fosse submetido à internação.

E ainda que assim não o fosse, deve-se considerar a possibilidade de inexigibilidade de conduta diversa, causa supralegal de excludente de culpabilidade (elemento necessário à responsabilização pessoal), já que não seria possível exigir que o médico na situação ilustrativa adotasse outro comportamento.

Neste caso, a conduta seria típica (prática dolosa de uma conduta omissiva prevista em um tipo penal), antijurídica (ausência de verificação de excludentes de ilicitude, como a legítima defesa, estado de necessidade e o exercício regular de um direito), mas não seria culpável, ou seja, não será o agente punido pela conduta, pois dentro da situação fática, não lhe era exigível outro modo comportamental.

Apenas a título exemplificativo, cabe mencionar o caso da Itália, que diante da ausência de hospitais e leitos para atender a população e a impossibilidade de ampliar a estrutura para atender todas as pessoas, instruiu os médicos locais a atender os pacientes que possuem maiores chances de responder de forma eficaz ao tratamento. Os critérios foram elaborados pelo Departamento de Proteção Civil da região de Piemonte, o qual valeu-se de parâmetros como a “sobrevivência potencial”, levando-se em consideração a possibilidade do paciente se recuperar da moléstia.

À luz do quanto narrado, conclui-se que na hipótese de inexistir leitos e hospitais para atendimento de toda a população em decorrência da grave situação pandêmica, será necessário analisar cada caso individualmente para constatar se o médico poderá ou não ser responsabilizado criminalmente pela “escolha” no atendimento de um paciente em detrimento de outro.







*Alexandre Imbriani, advogado criminalista, atuante no escritório Fernando José da Costa Advogados, pósgraduando em Direito Penal Econômico pela FGV/SP e graduado pela FAAP/SP.

*Lucie Antabi, advogada criminalista, atuante no escritório Fernando José da Costa Advogados, pósgraduanda em Direito Penal Econômico pela FGV/SP e graduada pela FAAP/SP.

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